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Poucas coisas são tão saudáveis como estar presente. Sentir com toda a pele como o sentimento do momento vai penetrando até alcançar o mais profundo da nossa alma para, a partir daí, ouvir atentamente o seu sussurro suave e claro, delicado e nítido. Estar presente, em silêncio e também aos gritos, pois a presença é, afinal, um convite para aceitar todas as cores da nossa existência.
Escrevo estas linhas no auge de um dia quente de outono, que me surpreende com algumas gotas de chuva caindo agora mesmo sobre o meu caderno. Escrever ao ar livre e à mão.
[Gostaria de vos convidar a parar um momento e a fazer o mesmo. Saiam e escrevam, parem um instante antes de continuar a leitura. Saiam e observem. Que a leitura vos ofereça alguns momentos para escutar com todos os vossos poros. Fechem os olhos ou abram-nos bem para perscrutar cada recanto.]
Jogo a observar as gotas de água que desfazem algumas destas palavras que emergem durante a minha escrita. Paro.
[Convido-vos a pararem.]
Mergulhar na água, molharmo-nos com quem somos. Somos água. Água da chuva, de lágrimas, de suor, de desperdícios, de limpeza e de nutrição. O som das gotas sobre o caderno transporta-me para a ilha que imagino quando penso em Ílhavo.
O relato foi transformado pela meteorologia do momento. O meu olhar pousa sobre as palavras que foram, no papel, parcialmente dilatadas pelo efeito da chuva e que agora, ao rever a primeira improvisação deste texto, me aparecem como a chave que abre o código que traz consigo este momento:
gotas
mergulhar
somos
água
Gotas de chuva que aparecem por surpresa, expandem a experiência, enraízam-te e mergulham-te. Gotas que se multiplicam, se transformam num oceano e te envolvem. O presente é a água e a água é saúde.
Vamos tentar voltar ao início.
Poucas coisas são tão saudáveis como estar presente. Abrir-se à própria identidade e explorar a própria voz, não sem medo, mas sim com desejo e ilusão. As gotas começam a cessar e o céu parece querer abrir-se. Consulto a rede e vejo que em Ílhavo também é tarde de chuva, como também o será no segundo dia de escrita em que agora me encontro a reescrever e a estender esta frase. Os tempos confundem-se, dilatam-se. Ílhavo é o lugar onde, numa tarde pré-pandémica de agosto, desci do carro e fiquei assombrada pela contundente e avassaladora presença do seu mar. A memória assaltou-me de repente quando comecei a preparar-me para participar na próxima edição deste festival que é o LEME, outra chave e também a engrenagem desta nau que é encontro, pausa e conversa.
A conversa é o vaivém dos elementos.
[Entretenham-se a brincar com terra, com água, com ar e com fogo. Repitam-no frequentemente.]
Programo o meu telemóvel para poder acompanhar a meteorologia deste lugar que me fala de um passado que é futuro - é o meu ou o das suas gentes? As palavras dilatam-se sobre o papel, os tempos e, agora também, as personagens.
O que é a água senão saúde? Repito-me, desta vez em forma de pergunta, para em seguida adicionar: o que são as artes de rua senão águas de presença, de vínculo e de relação? O que são senão um tempo durante o qual nos deter e observar, pensar de novo e libertar a fala, um lugar onde nos entregamos aos sentidos que acendem a chama que nos move? O que são as artes de rua senão uma presença aberta às experiências que nos aguardam em algum recanto quotidiano da nossa identidade? O que são senão essa possibilidade de aceder, mesmo que de improviso, a momentos de regozijo, de despertar e de agitação?
[Agitem o sangue, dancem ao som dos tambores, façam cambalhotas e pendurem-se de cabeça para baixo.]
As artes de rua são como a água ancestral dos nossos ecossistemas. Os seus índices vitais desvendam o encriptado de quem somos, que nome abrigamos, que língua falamos. A fala configura a geometria da água que nos rodeia e, ao mesmo tempo, a água fala-nos. A ciclicidade deste ritmo, que continua presente no terceiro dia de escrita deste texto, leva-me mais uma vez a Ílhavo e às suas ruas, à sua comida, às suas tradições, à sua orografia e às suas gentes. Ao seu agora. Um agora que é todos os tempos ao mesmo tempo e com o qual o LEME nos convida a abraçar as nossas raízes. Enraizar-se para ser e estar, para voar.
[Voem.]
Para voar é preciso um sistema nervoso em calma. E para que isto possa acontecer, devemos erguer ainda mais a voz para exigir políticas económicas e sociais que nos abracem e nos permitam viver dignamente. Que, se o poder quisesse, não estaríamos a falar tanto de bem-estar, porque estar bem seria o presente. E ainda assim, enquanto isso, não esqueçamos que, estando no presente, é mais difícil que nos mintam, é mais difícil que nos tenham ocupados ou que nos apanhem a olhar para o outro lado. Mais difícil ainda, se nos apanharem a encontrar-nos e acompanhados.
[Vão a Ílhavo. Vamos ao LEME. Aproveitemos o agora das suas águas como uma ágora onde partilhar escrita, jogo, dança, agitação e voo. Voemos para ganhar perspetiva e para voltar novamente; para girar e poder contemplar numa posição invertida.]
A partir de um agora pausado, é mais fácil ouvir-se e atrever-se a mostrar a singularidade harmónica que esconde a nossa voz. Um tempo em suspensão, de onde podemos perceber o código. As doces nuvens pairam, mais uma vez, sobre a minha cidade e sobre Ílhavo. A improvisação e o estar presente ajudar-nos-ão a encontrar o código.
Eva (La Fochs) é artista, professora de linguagem artística e artes performativas no ensino secundário e universitário, com foco na deriva, aprendizagem no espaço público, processos site-specific e pensamento contemporâneo. É cofundadora da Deriva Mussol e da L'Estrangera, e cocriadora da peça de investigação e escrita de cena WEFEAR. Foi autora da metodologia designada por aragrafia.
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