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Na sociedade contemporânea, o espaço público tornou-se uma arena essencial para a expressão artística, o envolvimento social e a reflexão política. Neste contexto, as artes de rua e as artes performativas em espaço público ocupam uma posição singular. Operam num espaço liminar entre a cultura institucionalizada e a vida quotidiana, interagindo diretamente com as comunidades e promovendo um renovado sentido de apropriação coletiva dos espaços partilhados.
Estando profundamente envolvida no desenvolvimento profissional deste setor, testemunhei em primeira mão como as artes em espaço público possuem um poder poético único para transformar a forma como as pessoas experienciam os espaços comuns. Para além do mero entretenimento, estas práticas criam oportunidades de diálogo, reflexão e imaginação coletiva. Quando os artistas ocupam o espaço público, fazem mais do que simplesmente atuar - convidam-nos a repensar a nossa relação com os ambientes que habitamos e com as comunidades que nos rodeiam. Este poder de fomentar a conexão é tanto oportuno como essencial num mundo marcado por uma fragmentação crescente.
O professor Cerruti But, especialista em planeamento urbano da Universidade de Turim, introduz o conceito de “Tensões Urbanas” no volume Arte e Espaço Público, publicado pelo Ministério da Cultura de Itália. De acordo com Cerruti But, estas tensões emergem nos espaços públicos, que não são definidos apenas pelos regimes de propriedade, mas sobretudo pelos usos e interações que possibilitam. Os espaços públicos são, neste sentido, territórios em constante negociação, onde diversas forças sociais, políticas e culturais colidem e se interligam. Como observa Cerruti, estas tensões desencadeiam “um equilíbrio dinâmico entre as forças que atuam no espaço, uma procura contínua e persistente por um centro de gravidade em movimento, resultante de negociações explícitas e implícitas”. Este enquadramento constitui uma lente valiosa para analisar a poética em evolução das artes em espaço público na atualidade.
Enraizada na tradição popular, a arte de rua tem sido historicamente uma forma coletiva de expressão, ecoando as vozes e experiências das comunidades locais. Com o tempo, evoluiu para uma prática artística sofisticada que esbate as fronteiras entre performance, ativismo e investigação urbana. As artes performativas em espaço público, em particular, evidenciam o poder transformador do espaço público. Quando um espetáculo acontece na rua, perturba os ritmos da vida quotidiana, convidando os transeuntes a parar, observar e participar. Esta interação espontânea gera o que pode ser descrito como uma “magia alquímica” - uma experiência partilhada que reivindica os espaços urbanos como locais de imaginação coletiva e investigação cultural.
Acredito que esta magia alquímica está no cerne da importância das artes em espaço público nos dias de hoje. Num mundo onde os espaços digitais moldam cada vez mais as interações humanas, o ato físico de nos reunirmos em espaços físicos assume um significado profundo. As performances em espaço público, com a sua presença efémera mas intensamente sentida, revelam camadas ocultas da paisagem urbana e abrem novos caminhos para a memória coletiva e o sentimento de pertença. Esta dimensão poética não é apenas uma escolha artística - é uma forma de resistência contra as forças que procuram homogeneizar e privatizar a vida pública.
A participação está no cerne desta linguagem artística. No entanto, à medida que os cenários culturais, tecnológicos e políticos evoluem rapidamente, a natureza da participação torna-se cada vez mais complexa. A arte participativa não é um ato neutro; envolve indivíduos com percursos e perspetivas diversas, cada um trazendo consigo as suas histórias, desejos e preocupações. Esta imprevisibilidade é simultaneamente uma força e um desafio. Por um lado, abre possibilidades para um diálogo genuíno e para a cocriação; por outro, exige que os artistas naveguem os riscos da manipulação, da exclusão ou de um envolvimento superficial.
Os artistas que trabalham em contextos públicos e participativos devem enfrentar questões de agência política e responsabilidade ética. Enquanto facilitadores de processos coletivos, não se limitam a criar espaços neutros de interação. Pelo contrário, moldam ativamente as condições em que a participação ocorre, tendo plena consciência das dinâmicas de poder e das implicações sociopolíticas do seu trabalho. A capacidade de promover inclusão e transformação depende do desenho cuidadoso destes processos - garantindo que permanecem atentos às comunidades com que interagem e aos contextos que habitam.
A emergência das plataformas digitais acrescenta uma outra camada de complexidade. As redes sociais e os ambientes virtuais redefiniram a forma como os espaços públicos são concebidos e experienciados. Embora estas tecnologias ofereçam novas possibilidades para a difusão artística e a criação colaborativa, levantam também questões de acessibilidade, autenticidade e controlo. Quem define as regras destas arenas digitais? Até que ponto os processos participativos podem estender-se aos espaços virtuais sem perder a sua essência corpórea e coletiva?
Apesar destes desafios, continuo convencida da relevância duradoura das artes em espaço público. Estas lembram-nos que os espaços públicos não são estáticos nem neutros, mas sim ambientes vivos e dinâmicos, moldados pelas pessoas que os atravessam. Ao longo do meu percurso, tenho testemunhado como as performances em espaço público podem gerar encontros inesperados, suscitar novas questões e cultivar um sentimento de pertença coletivo. Este é o poder poético e político das artes em espaço público: criar ligações, tanto literais como metafóricas, onde novos imaginários podem enraizar-se e florescer.
Numa era marcada por profundas transformações sociais e políticas, a poética das artes de rua convida-nos a repensar o significado do espaço público per se. Estas lembram-nos que estes espaços não são fixos nem passivos, mas sim arenas dinâmicas e disputadas, onde podem emergir novas formas de comunidade e imaginação. Através de processos participativos e da ressignificação das paisagens urbanas, a arte em espaço público desafia-nos a imaginar um futuro onde os bens comuns não são apenas preservados, mas continuamente reinventados através da ação coletiva e do diálogo criativo.
Fotografia: © Roberto Bonomo.
Eleonora Ariolfo é diretora da Outdoor Arts Italia ETS, liderando as relações internacionais e a produção. Com formação em artes performativas e licenciada pela Codarts, especializa-se no desenvolvimento de projetos culturais e tem gerido festivais e eventos de grande formato.
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