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The Queer Art of Failure, de Jack Halberstam, é um dos meus livros de cabeceira desde que me foi apresentado pela Dra. Judit Vidiella, em 2018. Quando penso em artes de rua, penso na maneira como Halberstam examina o fracasso, a ininteligibilidade, a indisciplina e outras perspetivas descartadas pela lógica capitalista com as quais se supõe o que deve ser a formação, a investigação, a produção ou a gestão da administração pública.
Durante anos questionei-me sobre uma definição possível. O que são artes de rua? O que queremos dizer quando falamos sobre teatro de rua, teatro na rua ou artes ao ar livre? E com que propósito? Atualmente, creio que, como setor ou lobby, o facto de assumir uma definição pode ser estratégico, embora não deixe de ter as minhas reservas quanto à necessidade desta aventura. Voltando a Halberstam, estou bem ciente do que ele aponta, referindo-se a Foucault, quando afirma que “disciplinar é uma técnica de poder moderna que promove e depende de normalização, rotinas, convenções, tradição e regularidade, e produz especialistas e formas administrativas de governo” (Halberstam, 2018, p. 20).
A minha amiga Eva Marichalar diz-me sempre que o capitalismo fascista gosta da simplicidade. Como uma disciplina de disciplinas, as artes de rua são tudo menos simples. Assim, não são fáceis de definir e, portanto, de controlar. Nem pela academia, nem pela administração pública, nem pelo próprio setor cultural. As artes de rua são diversas e promíscuas e, portanto, não é surpreendente que perturbem certas hegemonias. Pessoalmente, estou cada vez mais conectado com o incómodo que criam.
Embora na Europa possamos encontrar várias formações especializadas em artes de rua, a maioria delas são de natureza prática. Nesse sentido, há projetos pioneiros, como os que representam o leque de estudos oferecidos pela FAI-AR, em França, e pela Escola de Artes Cénicas e Teatro Contemporâneo de Rua (ŠUGLA), promovidos pelo Festival Internacional de Teatro de Rua Ana Desetnica, na Eslovénia, ou, entre muitos outros, alguns recém-criados, como SPASA, um workshop intensivo organizado pela Cruma (oficina de artes performativas de Tàrrega) e o criador Ferran Orobitg, em Espanha.
Por outro lado, embora a rua tenha sido muito pensada desde a arquitetura, arte contemporânea ou antropologia, entre outros campos, o olhar dos criadores de teatro de rua ainda não entrou na academia. Nesse sentido, redes como a IN-SITU contribuem de forma muito importante para se pensar a cena contemporânea, mas da universidade e da investigação científica não há ainda muito caminho percorrido. Nestas circunstâncias, não é de se estranhar que, ao tentar definir a natureza das artes de rua, os profissionais do setor discordem.
Neste ponto, não pretendo afirmar que devamos compartilhar a visão, nem que seja necessário limitar, categorizar, rotular ou até restringir. A própria dicotomia rua/sala gera tensões que poderíamos começar a superar. Mas num momento em que a discriminação positiva é necessária para cultivar a igualdade entre muitas áreas, acredito em nós como uma comunidade aberta com uma grande jornada pela frente.
Entre as diferentes respostas que consegui obter ao perguntar sobre as características formais e temáticas que fazem das artes de rua uma disciplina específica, pude recolher pontos de vista tão complementares quanto necessários. Sem querer encerrar nada, compartilho as seguintes abordagens.
Para Manfred Eccli e Pedro Cavaco Leitão, responsáveis ??do Coletivo Moradavaga, “as palavras” artes de rua “carecem de um conceito coeso, pois depende muito do tipo de manifestação artística, do amplo espetro que abarca a terminologia ou daquilo a que a pessoa que o utiliza se pretende referir. Do graffiti ao teatro de rua, da música de rua a uma miríade de objetos ou ações de arte pública, o termo ‘artes de rua’ pode ser usado para definir uma infinidade de diferentes expressões artísticas, com diferentes objetivos, origens, meios de comunicação, etc. Posto isto, existe um aspeto que podemos considerar comum a qualquer expressão artística que se possa encontrar na rua: o facto de ser mostrada/apresentada/representada no espaço público, e geralmente sem custos para a audiência. Portanto, para ser claro, o próprio termo ‘artes de rua’ inclui uma especificidade (a parte ‘rua’) e uma amplitude que é difícil de definir (a parte ‘artes’)” (P. Cavaco e M. Eccli, comunicação pessoal, 23 de agosto, 2021).
Por outro lado, para Nadia Aguir, ex-responsável pelas relações europeias e internacionais da rede IN-SITU, as artes de rua representam um movimento e não uma disciplina. “Eu não diria que as artes de rua, ou mais geralmente a arte no espaço público, é uma disciplina em si. No espaço público, seja qual for o sentido que lhe atribuamos – espaços exteriores, espaços não convencionais, espaços privados partilhados, tudo o que não se apresenta num teatro –, floresce uma infinidade de propostas artísticas, desde a dança, o teatro, a música, o circo e até as artes visuais. A fronteira entre as artes performativas e as artes visuais desgasta-se no espaço público: todos os projetos são imagináveis, mesmo os permanentes. E essa é a força da arte no espaço público, que deve antes ser vista como um movimento. O que essas propostas artísticas têm em comum é que elas olham para o meio ambiente: o espaço físico, mas também o espaço mental, a história do lugar, a forma como os habitantes o exploram, lá vivem. Quer se trate de um projeto de teatro de rua que respeite a relação palco/público convencional, de um projeto itinerante participativo ou de uma instalação artística denunciando as alterações climáticas, em muitos aspetos dizem algo sobre o seu ambiente” (N. Aguir, comunicação pessoal, 30 de agosto, 2021).
Para Salvador González, coordenador da Plataforma Arts de Carrer de Catalunya, “as artes de rua são uma disciplina de disciplinas, ou seja, podem incluir qualquer domínio artístico, da dança ao circo, passando pelo teatro, às artes visuais ou instalações. O que determina o que são ou não as artes de rua é o espaço, concretamente a via pública, a intervenção artística naquele lugar onde normalmente os cidadãos circulam no seu quotidiano e que se altera intencionalmente pela presença de propostas que instam, direta ou indiretamente, as pessoas que assistem ou caminham sem serem espetadores conscientes. A disposição dos elementos urbanos, o público e as normas vigentes fazem com que a criação em artes de rua deva ser considerada como uma disciplina própria onde, por vezes, é difícil ter o controle total da execução da criação, que pode ser alterado por interrupções na via pública, questões externas (ruído...), situação meteorológica e climática (chuva, noite, dia...), através da reação das pessoas que circulam sem fazer parte do próprio público. As ruas também permitem que os cidadãos reflitam sobre os espaços onde as peças ou criações são produzidas, pois oferecem um novo olhar sobre lugares comuns aos transeuntes e que se transformam” (S. González, comunicação pessoal, 11 de agosto, 2021).
Por fim, Katiuska Valenzuela acredita que “as artes de rua estão inevitavelmente associadas ao seu contexto, ao lugar onde são criadas, às condições, ao momento sociopolítico e, sem dúvida, ao local onde são exibidas. Embora compartilhem o exposto com outras disciplinas mais académicas, as artes de rua respondem ao espaço público e não podem omiti-lo. O jogo aí é vital, há uma comunicação inevitável” (K. Valenzuela, comunicação pessoal, 23 de agosto, 2021).
Fotografia: Giroflé, de Circolando © Delphine Mathieu.
O texto corresponde a um excerto do capítulo “Conversas sobre artes de rua contemporâneas: desafios e perspetivas futuras” do “Manual de boas práticas para a organização de eventos artísticos no espaço público” (Outdoor Arts Portugal, Bússola, 2021).
Halberstam, J. (2018). El arte queer del fracaso. Egales.
Jordi Duran i Roldós é licenciado em Filosofia Catalã (Universidade de Girona) e em Filosofia Hispânica (Universidade de Girona), detendo ainda um mestrado em Educação Inclusiva (Universidade de Lleida, Universidade de Vic, Universidade Central da Catalunha e Universidade das Ilhas Baleares). Estudou ainda Direção Artística e Dramatúrgica no Instituto de Teatro de Barcelona (ESAD). Desde 2008, é responsável artístico pelo projeto Dimitri Ialta. Como gestor cultural, foi diretor artístico da FiraTàrrega (2011-2018) e codiretor do mestrado em Criação Artística para o Espaço Público da Universidade de Lleida, em parceria com a FiraTàrrega (2013-2017). Como docente e investigador, colaborou com o mestrado em Gestão Cultural da Universidade Internacional da Catalunha (2010-2017). Atualmente, é docente da licenciatura em Artes Performativas na ERAM (Universidade de Girona) e diretor do Festival Z.
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