#6. Arte e território: entre convergências, interferências e divergências

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#6. Arte e território: entre convergências, interferências e divergências

Data:

27

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07

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2024

Autor:

Stéphane Segreto-Aguilar

Palavras-chave:

artes de rua, espaço público, território
#6. Arte e território: entre convergências, interferências e divergências

Enquanto as múltiplas formas de privatização, patrimonialização e militarização do espaço público – entendido como um espaço de encontros, trocas e confronto com o outro – contribuem para erodir o futuro democrático da nossa sociedade, muitas ilhas de solidariedade, resistência e resiliência surgem aqui e ali, possibilitando ampliar as possibilidades, reinventar o futuro e imaginar estilos de vida e relacionamentos mais sóbrios, baseados na cooperação e não na competição. As artes no espaço público – arquipélagos dos sensíveis – infundiram os nossos territórios há mais de meio século, tecendo-se nos interstícios do tecido social, criando laços entre os cidadãos e deixando vestígios dos seus caminhos singulares. Que papel podem as artes de rua desempenhar no planeamento, desenvolvimento e prospeção dos territórios de amanhã? Como podem as propostas artísticas e as dimensões económica, social, ecológica, climática e institucional dos nossos territórios ser tidas em conta de forma igualitária pela administração pública? Que competências os profissionais culturais, interessados em trabalhar no espaço público, precisam fortalecer para enfrentar os desafios dos próximos dez anos?


Vamos tentar, por um momento, deixar de lado as diferenças semânticas, translacionais, ontológicas, estéticas e políticas que parecem existir entre o teatro de rua, as artes de rua e a criação artística para o espaço público. Tentemos pensar as artes no espaço público no seu sentido mais amplo, como artes plurais, internacionais e radicais. Vejamos cinco exemplos que pretendem ilustrar as relações entre arte e território. São ações em áreas urbanas e rurais, na Europa e noutras partes do mundo, apoiadas por autoridades públicas ou de iniciativa privada, de duração e impacto variáveis. Alguns podem servir de protótipo para outros contextos, outros são simples fontes de inspiração e necessariamente terão que ser adaptados e reinventados.


Matera, Itália. Cidade de sessenta mil habitantes localizada no sul de Itália, na região da Basilicata, que recebeu, em 2019, o título de Capital Europeia da Cultura (CEC). Matera é uma cidade geograficamente prejudicada e historicamente marcada pela “vergonha” dos sassi (habitantes primitivos), causada principalmente pela evacuação de dezassete mil dos seus habitantes, na década de 1950, por insalubridade e forte promiscuidade. O desafio do sucesso para a CEC tem sido revitalizar um território – cultural e turisticamente – e criar ligações entre os seus habitantes, tanto os da cidade velha como os da nova. Com efeito, ao longo do ano de 2019, quase vinte mil residentes terão sido mobilizados para cocriar o programa cultural Matera 2019 e, assim, participar em todas as etapas do processo criativo, de acordo com um princípio definido na candidatura para o projeto “o habitante cultural”, foi possível reinventar a relação entre o artista e o público. A última etapa desse processo foi a elaboração de um manifesto poético-artístico, apresentando novos caminhos para a prática da arte participativa e consciencializando os residentes sobre a arte e as práticas culturais.


Seul, Coreia do Sul. Megacidade de dez milhões de habitantes – vinte e cinco milhões se considerarmos toda a área urbana, ou seja, metade do país –, um ambiente urbano em rápida mudança, com fortes impactos na vida diária dos seus habitantes, como a gentrificação, a renovação urbana, o declínio rural e o deslocamento significativo da comunidade. Connected City, um projeto liderado pelo British Council, foi desenvolvido, entre 2017 e 2018, no âmbito do ano de programação cruzada Reino Unido – Coreia do Sul, com o objetivo de regenerar territórios e criar algo em comum. Mais concretamente, podemos citar as seguintes ações: a realização de dois filmes precedidos de residências artísticas, nomeadamente Making and the Connected City, em torno do impacto da gentrificação no trabalho dos artesãos, e Arts and the Connected City, sobre formas de diversificar públicos através da criação artística no espaço público; a organização de uma conferência como parte da Bienal de Arquitetura e Urbanismo de Seul, sobre as relações entre arte, tecnologia, lugares e comunidades; e, finalmente, a criação de uma banda desenhada, esculturas sonoras, jogos urbanos e obras musicais geolocalizadas.


ZAD de Notre-Dame-des-Landes, França. O projeto que nos interessa é o Laboratório de Imaginação Insurrecional – também conhecido como Labofii –, cuja aposta é fundir a imaginação artística com o compromisso radical do ativismo, criando novas formas de “resistência criativa” e, ao mesmo tempo, “[…] acabar com a arte extrativista que se apropria do valor num determinado lugar para regurgitá-lo noutro […]”. Entre as atividades que podemos citar, temos: ações de ciclismo em massa durante a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, em Copenhaga, passeios pela Grã-Bretanha com um exército de palhaços, organização dos Climate Games durante a COP21 em Paris, e também a produção de numerosos recursos e publicações.


Bangalore, Índia. Localizada no sul do país, capital do estado de Karnataka, possui oito milhões e meio de habitantes; é uma cidade em plena mutação, desenvolvendo-se muito rapidamente. Metro Neighborhood Project, um projeto liderado pela Art in Transit, é uma iniciativa artística e educacional coordenada por Arzu Mistry e Amitabh Kumar, que foi lançada pelo Srishti Institute of Art, Design and Technology, em colaboração com a Bangalore Metro Rail Corporation e várias estruturas culturais e artistas locais. Os desafios deste projeto destacaram a diversidade dos bairros da cidade, recorrendo a estações de metro como um local para ativar as comunidades criativas, forçando a colaboração entre os equipamentos da cidade (Bangalore Metro Rail Corporation), as universidades (Srishti Institute of Art, Design and Technology) e diversos coletivos artísticos. Para responder a estas necessidades e alcançar os objetivos, a Art in Transit concebeu e implementou exposições, workshops, intervenções artísticas com vista a explorar o passado da cidade e interpretar as mudanças que estão a surgir.


Medina de Tunes, Tunísia. Cidade banhada pelo mediterrâneo, com seiscentos e cinquenta mil habitantes, dos quais cerca de cento e vinte mil vivem na medina, classificada, desde 1979, como Património Mundial da UNESCO. Um território onde a expressão artística no espaço público tem desempenhado um papel determinante na transição democrática do país. Vejamos o caso da Dream City Biennale, um festival multidisciplinar que existe desde 2007, e cuja próxima edição terá lugar em outubro de 2022: estes encontros artísticos são liderados pela associação L’Art Rue, criada pela dupla de bailarinas e coreógrafas Selma e Sofiane Ouissi, responsáveis pela direção artística ao lado de Jan Goossens. O objetivo da Dream City? Criar algo comum em torno de temas que dividem profundamente ou, nas palavras de Sofiane Ouissi e Jan Gooesens, construir “sociedades de sonho”, “um espaço urbano e político-social comum entre artistas, habitantes, comunidades”, “criar um espaço de travessia democrática”.


Quais seriam, no final de contas, os pontos-chave a tirar destas diferentes experiências à volta do mundo? Em primeiro lugar, o poder transformador das artes no espaço público e a sua capacidade de criar vínculos em qualquer tipo de território, de conectar diferentes comunidades dentro da mesma sociedade, de acolher a complexidade e de fornecer ferramentas críticas para melhor compreender as múltiplas realidades que o cercam e desvendar questões contemporâneas particularmente emaranhadas. Assim, as artes no espaço público podem representar um catalisador formidável e impulsionador do contexto de “viver juntos”, apoiando a regeneração dos territórios. No entanto, isso leva tempo e requer recursos, não só financeiros, mas também humanos, técnicos e organizacionais. Enfim, pela interdisciplinaridade, o pulsar do coração de todos esses projetos que ativam territórios de forma duradoura através da arte permitem, assim, imaginar futuros alternativos: encontramos uma grande diversidade não só nas práticas, nos processos, nas ferramentas e nos meios implementados, mas também nas reflexões, nos encontros, nas histórias e nas memórias que esses projetos geram.


Para concluir tenhamos esperança de que nos próximos dez anos surjam novos “arquipélagos dos sensíveis” e ajamos coletivamente para que estes se tornem parte da nossa realidade de forma sustentável, e que os sonhadores, dos quais faço parte, vejam os seus desejos concretizados.


Fotografia: Planteia (2021), um projeto comunitário que é jardim-palco-jogo, situado na Praça da Casa da Cultura de Ílhavo (23 Milhas) © Pedro Mostardinha.

O texto corresponde a um excerto do capítulo “Arte e território: entre convergências, interferências e divergências” do “Manual de boas práticas para a organização de eventos artísticos no espaço público” (Outdoor Arts Portugal, Bússola, 2021).


Stéphane Segreto-Aguilar

Stéphane Segreto-Aguilar é responsável de relações internacionais do ARTCENA, o centro nacional francês para o circo, as artes de rua e o teatro, e coordenador da Circostrada, a rede europeia de circo contemporâneo e artes de rua. É mestre em Gestão Artística e Políticas Culturais Europeias, explorando, há mais de dez anos, as interligações entre cultura, identidade e relações internacionais, promovendo a criação artística como ferramenta de transformação social e experimentando novas formas de cooperação e governança. Integra ainda os órgãos diretivos do On the Move e da Perform Europe.

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